sábado, fevereiro 17, 2007

55. COISAS DE QUE TENHO SAUDADES II

O Grupo do Leão - Columbano - Museu do Chiado

Quando os meus pais iam viajar, eu ficava triste. A casa ficava subitamente muito grande e os relógios tornavam-se inúteis porque não havia a hora do meu pai chegar.
Então os meus avós inventavam para mim a alegria. E a alegria era feita de coisas de que tenho saudades. Muitas saudades.
Tenho saudades de ir jantar ao Leão d’Ouro. Era um bom restaurante antigo, na Rua 1º de Dezembro. E não quero saber se hoje é um rodízio muito bom, farei os possíveis por não passar à porta. Tenho saudades das cadeiras enormes e pesadas do Leão d’Ouro, do grande leão dourado à entrada, das toalhas brancas de um pano adamascado e sem mácula, da sensação de uma certa humidade nos guardanapos. Tenho saudades dos salmonetes grelhados, com molho de manteiga e limão a espremer, do Leão d’Ouro. E não quero sequer saber se os que se comem hoje em Setúbal, a preço de ourivesaria, são tão bons ou melhores ainda. É dos salmonetes grelhados do Leão d’Ouro que eu tenho saudades. Tenho saudades de ouvir o meu avô dizer-me que dantes se reunia ali o Grupo do Leão, quando aquilo era ainda uma cervejaria. Eu não sabia quem era o Malhoa, o Columbano ou o Rafael Bordalo Pinheiro, mas sabia que, para o meu avô me falar neles, era gente importante e boa.

Fotografia emprestada de: catedral.2.weblog.com.pt.

Depois vinha o Parque Mayer. E tenho saudades do Parque. As luzes de gato e rato que chamavam a atenção para os nomes de Vasco Santana, Beatriz Costa, Mirita Casimiro, Villaret, o grande António Silva. Tenho saudades dessa sensação de frio no estômago quando me aproximava do teatro, pela mão do meu avô, e olhava lá para cima, para a bilheteira, a pensar que podia estar esgotado. Tenho saudades de não perceber as piadas da revista, mas chegar a casa, pôr uma cartola, e imitar a Mirita Casimiro. Tenho saudades das matinés do Capitólio, onde descobri, ao colo do meu avô, o marxismo, na sua tendência groucho e fiquei incondicional para toda a vida.
Tenho saudades de lanchar na Avenida da Liberdade, aos domingos, na Pastelaria Veneza, e mandar vir uma groselha com água do castelo e um prato de bolos de creme, que ali ficavam, indiferentes aos micróbios, à espera de que comessemos os que queríamos, para os outros voltarem para a mesa de um próximo cliente.
Tenho saudades de adormecer numa cama onde se espalhavam livros, pratas de chocolates e bonecos de papel de lustro.


E de ter a certeza de que no dia seguinte, ou daí a uma semana, vinha o boletineiro entregar um telegrama que dizia “Chego depois de amanhã Sud Expresso. Saudades. M.”

4 comentários:

Ana Paula Sena disse...

M., eu adoro estes seus textos sobre a saudade! Sinceramente. Quando os leio é como se eu estivesse lá a ver tudo através das suas recordações. Não são minhas mas podiam ser. E depois, tenho pena de não ter visto tudo isso que recorda, esse ambiente de uma certa Lisboa antiga.
Gostei mesmo muito, foi um bom bocadinho aqui no seu blog.
A.P.

Maria Eduarda Colares disse...

E ainda há tantas, de onde estas vieram! Muito obrigada. Beijinhos

Bandida disse...

esta sopa de saudade, tão bela...

posso comer mais um pouquinho?!...




beijo


B.
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Maria Eduarda Colares disse...

obrigada, bandida. Vai-te servindo à vontade, há sempre um pratinho. Mas em doses homeopáticas, para não enjoar.
Um beijo