Tenho saudades do Bairro Alto onde nasci. Da Calçada dos Caetanos, hoje rebaptizada Rua João Pereira da Rosa. Do 3º andar do número 10, mesmo em frente do Conservatório. Tenho saudades dos telhados que avistava das águas furtadas do sótão de minha casa, estendendo-se até ao Tejo. Tenho saudades do sótão, uma gruta secreta onde os piratas cuja existência só eu e os meus primos conhecíamos escondiam tesouros deslumbrantes. Tenho saudades do cheiro a tinta dos jornais, que invadia as ruas ao cair da noite, quando os ardinas corriam a apregoar o Pop’lar, o Lisboa, República, traz o desastre, traz a bola, olhó Pop’lar!
Saudades de sair do eléctrico, na Calçada do Combro, ao colo, e fingir que dormia para subir a rua, cabeça tombada sobre o ombro do meu pai, a fazer cintilar por entre as pestanas semicerradas as luzes da iluminação pública. Saudades do soalho de madeira, mil vezes encerado e sempre brilhante, onde eu brincava à apanhada com os raios de sol; do poial do pote e do pote de barro vidrado, com uma torneirinha metálica muito areada. Saudades da casa dos banhos, onde no ar se condensava a humidade e das toalhas enormes, brancas e felpudas que me enrolavam o corpo quente e preguiçoso, acabado de sair da tina de esmalte. Saudades do Menino, o cão da mercearia, que era meu amigo mas uma vez me mordeu e foi o meu primeiro contacto com uma realidade chamada traição. Saudades das tardes de brincadeira à sombra do cedro do Príncipe Real; das pontes de ferro do Jardim Botânico; de São Pedro de Alcântara. Saudades dos pregões das varinas, ó viva da costa! das mulheres que apregoavam “quem quer figos, quem quer almoçar”, do som das gaitas dos amola tesouras e navalhas (“amanhã vai chover, menina, está a ouvir a gaita?”). Saudades do meu gato Janota, gordo e dourado, dormindo no parapeito da escada. E da escada, onde o armazém de papel no rés-do-chão desafiava todas as normas de segurança e faria o desespero de qualquer corpo de bombeiros. Saudades da mercearia e dos cartuchos de papel grosso, acinzentado, com uma risca fininha lilás, para onde era pesado um quilo de açúcar escuro, tirado do enorme pote de louça ou os 250 gramas de bolacha Maria, a que vinha na caixa que tinha uma menina que estava numa caixa que tinha uma menina que estava numa caixa que etc. Saudades do quarto dos meus avós, de pé direito altíssimo que eu admirava deitada na cama enorme, por entre lençóis brancos, almofadas de rendas e folhos, a cheirar a sabão e flores.
Saudades de esperar à janela, ao cair da noite, que o meu pai chegasse a casa.
7 comentários:
Um post muito belo.
Do melhor que tenho visto na blogosfera.
Por este andar,gostarei sempre de a ler.
A.P.
Tenho saudades de mais escrita tua, como esta, que desliza escorreta e cheia de emoção. Tenho saudade de mais "coisas que não se dizem", mas que tu deves dizer. Beijos
Obrigada, Ana Paula, farei os possíveis por merecer elogios tão generosos.
Pois, Lauro, muito grata pelos estímulos. Mas o tempo, o tempo é tão pouco que mal dá para ler os blogs...
beijos
Mas o laurinho tem MUITA razão!!
o meu clube de fãs é o máximo!!! POucos mas bons! Obrigada!
Lindio, lindo, como só tu sabes escrever, com emoção. Levaste-me aos meus melhores tempos de infancia, ..afinal eu nasci no bairro ao lado. Faço minhas as palavras do Lauro. Obrigada por este bocadinho. Não deixes de escrever. Beijo. São
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