sexta-feira, dezembro 29, 2006

9. UM, DOIS, TRÊS, UMA COLHER DE CADA VEZ

A sua beleza deslumbrou-o. Nunca ela estivera tão resplandescente. Desceu a escada lentamente, segura de si. Segura das suas formas, que o vestido de veludo vermelho mais revelava do que cobria. Segura do brilho do seu cabelo , castanho muito escuro, suavemente ondulado, espalhado pelos ombros numa liberdade estudada. Segura dos gestos provocantes, do vagaroso descer de cada degrau, desafinado a paciência dele, num maldoso jogo de gato e rato com o seu desejo. Segura do porte altivo dos seus seios que o decote descobria, firmes e cheios. Segura do poder quase infinito sobre aquele homem poderoso que mantinha perante a sociedade uma tão impenetrável fachada de altivez e indiferença e que agora ali estava, ao fundo da escada, suspenso dos seus gestos. Fitou-o com olhar lânguido, entreabrindo a boca de um vermelho de cereja madura e descobrindo uma impecável fileira de dentes imaculados...
Subitamente apercebeu-se de um ruído estranho. Olhou em redor. Parecia-lhe vir de muito perto, mas não identificava a origem. E no ar, um cheiro...
Fechou bruscamente o livro, esquecendo-se de virar o cantinho para marcar a página. Atirou-o para cima da pedra mármore da chaminé. Meia dúzia de pingos voaram e vieram estatelar-se na capa lustrosa e colorida.
Cheirava a queimado. A panela vomitava golfadas verdes do que se diria uma poção mágica a ferver em caldeirão de bruxa.
Bolas! Lá tinha outra vez deixado queimar a sopa. Andava cada vez mais distraída. Olhou para o relógio na parede. O marido devia estar mesmo a chegar. Já ia haver merda!
E nem sequer tinha conseguido chegar à cena do beijo!

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