quarta-feira, dezembro 13, 2006

7. O MAIOR PRAZER


Nem mesmo a ameaça de um prato de sopa de feijão - é verdade, a mais abominável de entre todas as abomináveis - me dissuadiria. Eu faria fosse o que que fosse para a ter!

A escola primária, que eu frequentava pela primeira vez, ficava numa moradia de dois andares, com jardinzinho ao lado, protegido por um gradeamento de ferro pintado de verde, na Rua Praia da Vitória, mesmo a desembocar no Saldanha. Do outro lado da praça, o Monumental exibia cartazes de filmes e peças de teatro que prometiam um mundo de sedução, mas eu só tinha olhos para a montra da papelaria. Ficava mesmo à esquina. Era uma papelaria pequena, um pouco escura, com um grande balcão de madeira. Habitualmente compravamos ali os cadernos, os lápis, as borrachas e as folhas de cartolina. Também havia, com o sabor gostoso a prémio, as bonecas de papel, com roupas para recortar e vestir.

Não foram muitas as actividades que vim a descobrir pela vida fora que me dessem um prazer tão intenso como o que sentia quando pegava numa folha nova e começava a recortar os minúsculos adereços, os vestidos de festa, a roupa desportiva dessas criaturinhas de papel, de gestos improváveis, suspensos e idênticos em todos os momentos das suas frágeis existências.

Mas também não eram as bonecas de papel que mobilizavam as minhas atenções nesses escassos dias que faltavam para o Natal.

Ela lá estava. Pequena, perfeitíssima, com a estrutura em plástico castanho, imitação da madeira a sério, e os estofos de um branco amarelado, raiados, simulando tecido. A mesa, quatro cadeiras, um aparador, um relógio de caixa alta e um side-board.

A mobília de casa de jantar. A mobília mais parecida com uma mobília a sério que eu jamais vira.

Eu tinha outras mobílias, mas eram vulgaríssimas, de plástico ostensivamente cor de rosa e azul bebé, sem qualquer preocupação de copiar a realidade. Aquela mobília era outra coisa. Era A mobília. Perfeita. Era quase intolerável a ideia de não a ter.

Puxando pela mão do meu avô, saía da escola e corria até à esquina, sem suportar a espera, para ver se ainda lá estava, para ver se alguém mais afortunado do que eu não a teria já levado. Mais tranquila, então, ali ficava, todos os dias, a olhar para a montra, a olhar para a minha mobília, a sonhar tê-la nas mãos, possuí-la.

- Talvez o Menino Jesus te traga a mobília.

Assim o meu avô ia alimentando as minhas esperanças. E se ele o dizia, é porque era possível. Talvez o Menino Jesus viesse ali , à papelaria ao lado da minha escola, quase na esquina com o Saldanha, em frente dos cartazes do Monumental, na véspera de Natal, buscar a minha mobília. Nem por um momento me interrogava se não poderia acontecer que o Menino não soubesse onde ficava a papelaria, ou até mesmo o Saldanha, ou o Monumental. Não, isso era simplesmente impossível. Lisboa era nesse tempo mais pequena e ninguém ouvira falar em centros comerciais. Em Pais Natais também nem por isso. Portanto o Menino Jesus devia conhecer a papelaria. Para mais, era ali que estava a mobília que eu desejava com mais força do que jamais desejei alguma coisa na vida. O Menino Jesus tinha de saber.

Um dia, ao sair da escola, corri até à montra e parei subitamente. Apertei com mais força a mão do meu avô. Os olhos encheram-se-me de lágrimas da mais profunda desilusão. A mobília não estava lá. Eu sabia que podia acontecer. Era a vida. No caminho para casa, nem eu nem o meu avô dissémos palavra. Ele porque respeitava a minha tristeza, eu porque não tinha já nada para dizer. Eu, que até tinha comido a sopa de feijão!

Na manhã de Natal, levantei-me cedo e corri para a chaminé. Apesar de tudo, era Natal. Mas desta vez um Natal sem esperança, sem (muito) alvoroço.

Em primeiro plano, bem em evidência, sentada na chaminé, estava uma boneca. Eu sabia que era das que diziam "papá" e "mamã" e que vinham de Espanha. Era linda.

Estendi a mão para lhe pegar e, de repente, os meus olhos encontraram-se, por entre livros de pintar, caixas de lápis, roupas de bonecas e carrinhos, com uma caixa não muito grande, discreta, que se escondia ao fundo, timidamente. A caixa da minha mobília.

Corri pelo corredor fora, deixando tudo para trás e gritei, acordando toda a casa:

- Avô! Avô! Ele trouxe a mobília! Ele trouxe, Avô! Está na chaminé!

Nunca mais na vida tive um presente que me desse uma tão grande felicidade. E não tenho motivos de queixa. Mas uma felicidade assim, tão intensa, tão genuína, tão sem mancha, tão absoluta... Nunca. Nem eu, nem ninguém! Sou capaz de apostar.

4 comentários:

Maria Eduarda Colares disse...

O Senhor é tão bom, deu-me uma boneca! O miúda, escreves bem. Sempre o disse. Porque não escreves mais, para a malta ler? Se nao for eu a puxar por ti, já viste? Beijo

fcorado disse...

Notável! Grande texto!
Um praer ler, aliás como sempre...
Beijos

Ana Paula Sena disse...

Foi com imenso prazer que li este texto! De repente...eu estava ali e era também aquela garota,desejosa de possuir aquela mobília. Muito bonito, ao ponto de transformar um momento simples em qualquer coisa de infinitamente valioso. Chama-se talento. Parabéns a quem escreve bem, da parte de quem gosta de ler coisas bem escritas.
A.P.

Maria Eduarda Colares disse...

Muito obrigada, Ana Paula. Fico feliz.