sexta-feira, dezembro 08, 2006

5. ESSA SOLITÁRIA SOPA


A sopa está na mesa!
A frase sugere companhia, calor humano, amena cavaqueira em redor de uma mesa com toalha adamascada e guardanapos de pano. Sugere velhas casas de família, lá para o Norte, quando as pessoas ainda tinham famílias com velhas casas lá para o Norte. Sugere uma amável pensão familiar com serviço de refeições em pratos de cavalinho, já muito lascados. Sugere sacos de guardanapo com dizeres a ponto de cruz - "Bom Apetite" ou "O Guardanapo da Menina". Sugere os Emissores Associados de Lisboa, com "música para o seu jantar".

Mas a realidade é outra. A realidade é que a sopa é solidão. Solidão de balcão de snack-bar na hora apressada do almoço. Solidão de vida inútil. Solidão de cansaço, solidão de vergonha, solidão de cortinas de renda por dentro de um janela onde o próprio gato já morreu.

- Vais almoçar?
- Como ali qualquer coisa, uma sopa, mesmo ao balcão.
Come sem uma palavra, perante a indiferença de gestos inúteis do empregado que prepara já o individual de papel para a sopa que se segue.
- Almoçaste?
Não. Não almocei. Engoli à pressa, mesmo ao balcão, qualquer coisa. Creio que era uma sopa. Devia ser de legumes. Todas as sopas que se comem ao balcão do snack são de legumes. É que, sabes, comer já não me interessa, já nada me interessa. Para quê sentar-me a uma mesa, aceitar uma companhia, conversar ou simplesmente ler o jornal ou um livro enquanto se espera? Não, como ali qualquer coisa, uma sopa, mesmo ao balcão.

***
- Senhor Januário, eram estes legumes, se faz favor.
- Só, Dona Gertrudes?
- É para a sopa...
- E para o seu jantarinho, não vai nada?
- Ah, o jantar é um prato de sopa e já está. Com a minha idade... está a ver!
Acabou-se. Com a minha idade, fico bem com qualquer coisa, fico bem em qualquer canto, contento-me com o que há. Uma sopa, pois, isso chega. Não vale a pena incomodar ninguém. Em silêncio, por cá ando, sem fazer ruído para não se aperceberem de que já cá estou a mais. Sem comer, não dá, não é? Mas qualquer coisa serve, que os prazeres da vida não são para mim. Uma sopa, uma sopinha qualquer, está a ver? Faço uma panela das pequeninas e dá para uma quantidade de dias. De pé, na cozinha, ao lado do fogão, aqueço uma tigelita de sopa. De legumes, claro. E despacho-me num instante. Estou sozinha, não é? E depois, uma sopa... é isso, que mais é que é preciso para continuar viva até amanhã?
- Boa noite, Senhor Januário.

Sem comentários: