quarta-feira, agosto 15, 2007

153. COISAS DE QUE TENHO SAUDADES VII

Hoje acordei com um sms do F. que dizia "Merde il pleut." E tive saudades do tempo em que no Verão não se acordava com a surpresa de um dia de chuva. Saudades dos verões da minha infância, que escorriam doces, idênticos e reconfortantes até ser tempo de voltar a abrir a gaveta onde se fechavam as roupas quentes juntamente com as recordações de chuva, de regressos às aulas, de dias mais curtos, de engarrafamentos de trânsito, enfim, de tudo o que é preciso aguentar para ter direito ao Verão.

Carcavelos 1947

Tenho saudades da expectativa com que aguardava a chegada da camioneta de caixa aberta que iria fazer a mudança de parte da nossa casa para um lugar distante (primeiro Carcavelos, depois a Rinchoa, onde para além de quatro moradias e uma cabra não havia senão pinheiros) onde se iriam estiraçar, preguiçosos, os meses de Julho, Agosto e Setembro. Até que um dia a camioneta regressava para fazer o percurso inverso e trazer as panelas, os tachos, a roupa de cama, os colchões, as malas, os caixotes de livros, de regresso a Lisboa.

A Rinchoa em 1950

Tenho saudades de reeencontrar o tranquilizador cheiro a mofo da casa e correr a abrir as janelas de par em par para deixar entrar o sol. Então "as mulheres", designação que abrangia a nossa fiel Senhora Luisa e algumas indígenas, entravam por ali dentro, de baldes com água, empunhando vassouras e escadotes e eu era varrida para o exterior com um: "Vai brincar lá para fora, não andes aqui a estorvar". Lá fora estavam os pinheiros, a cabra Begana e alguns miúdos que, tal como eu, estavam afastados das alegrias da praia por uma irritante doença.

Rinchoa - a Begana

Tenho saudades de subir aos pinheiros, de correr pelos morros, de me espojar na caruma que atapetava o chão. De dormir a sesta com as janelas abertas de par em par e lá fora só se ouvir o cantar dos grilos e o gemer dos pinheiros arrepiados pelo vento. De, ao fim do dia, ouvir a voz do meu avô e do meu pai (cujo conceito de férias estava bem expresso na frase "férias só em cidades maiores do que Lisboa"), que chegavam no comboio, após um dia de trabalho.
Tenho saudades de depois, anos mais tarde, apanhar a linha do Oeste, até S. Martinho do Porto e, ainda mal se avistava ao longe a estação, sentir nas narinas o cheiro do mar e na pele a brisa húmida de sal e sentir-me invadir pela mais plena sensação de liberdade e pura alegria.
Saudades de quando as férias duravam 3 meses inteirinhos. Saudades de quando era Verão e não chovia.

15 comentários:

Ouriço disse...

Adoro as fotografias!
Bjs

Bandida disse...

são as memórias que nos arejam a vida.

ou não?



beijo saudoso querida E.


B.

Maria Eduarda Colares disse...

amanhã é dia de matar saudades...

isabel disse...

sim! também tenho memórias dessa camioneta de caixa aberta. Até já fiz um post sobre isso

http://serpentine99.blogspot.com/2006_08_01_archive.html

e também tive uma sombrinha que dizia: merde il pleut!

muitas coincidências m! boas!

beijos
(aka take.it.isa)

isabel disse...

m obrigada!!

beijoss

C. disse...

são os aromas eternos que ficam para sempre guardados nas arcas douradas dos dias dos verdes anos.
texto belo e nostálgico. lindas fotografias B&W, linda menina.

Beijinho.

C.

Maria Eduarda Colares disse...

obrigada, c., a menina era engraçadinha, reconheço, apesar da imodéstia...

Ida disse...

Que lindo texto, Eduarda! É claro que os verões da minha infância foram diferentes dos teus, a geografia ligeiramente outra, évidemment.

Mas há coisas engraçadas, a chegada à praia, tal como a descreves, é tão semelhante ao que eu sentia qd lá chegava, mesmo morando numa cidade à beira mar, mas não de frente para o mar. Deve ter a ver com o encantamento que o mar exerce sobre os humanos. Ou sobre os humanos crianças? Whatever, dá vontade de reler e reler e reler só pra repetir as sensações que ele me faz sentir, ainda q de forma vicária.

Beijos de um inverno que quase nunca o é, se é que isto serve de consolo...

Maria Eduarda Colares disse...

querida ida, deve ser por o inverno quase nunca o ser que eu sinto esse hemisfério tão meu. Obrigada pelas palavras. beijinhos

Ana Paula Sena disse...

Um excelente post, cheio de lembranças. Ao ler o texto, as suas recordações foram um pouco minhas também, pela sensível forma como estão expressas, e também porque vivi, em certos casos,situações semelhantes.
Adorei a imagem de Carcavelos!
As fotos são giríssimas, a menina muito bonita e engraçada.
Acho que é bom sentir saudades! :)
Beijinhos

Maria Eduarda Colares disse...

obrigada, ana paula. Saudades só significa que o que passou foi muito bom. O presente também, felizmente.
beijinhos

Luís Galego disse...

saudade é a palavra certa...encantador este post.

n©n disse...

Ainda não tinha parado para ler.
O texto é muito bonito e as fotos lindas!!!
Bj!
;-)

Maria Eduarda Colares disse...

obrigada, luis
um beijo

Maria Eduarda Colares disse...

s. thanks a lot! very kind of you, dear