Tenho saudades da Feira do Livro. É verdade! Dir-me-ão que é fácil, basta chegar ao Saldanha, descer a Fontes Pereira de Melo e lá estamos na Feira.
Mas do que eu tenho saudades é da Feira do Livro na Avenida da Liberdade. Voltarão a dizer-me que não há assim tantas diferenças para que esteja saudosa da Feira.
Mas estou.
Dantes a Feira do Livro era um dos acontecimentos do ano, juntamente com a Feira Popular, as Marchas, o hóquei em patins, o Festival da Canção e pouco mais. Era a única oportunidade para se comprarem os livros a preços especiais, os "preços de feira". Não era muito diferente da que existe hoje, mas era única e era uma grande festa.
Aguardava-se a inauguração da feira com expectativa. Uns dias antes, quando começavam a montar as barraquinhas, em forma de livros abertos, pela Avenida acima, dizia-se logo: "Vai começar a Feira" e era com impaciência que se esperava o dia em que se ia dar "uma volta". Ver, farejar as novidades, pedir os catálogos. Mas não era dia de comprar, ainda. Depois havia um compasso de espera, para fazer render o sabor da Feira.
Tenho saudades de sentir o frenesim da espera, de adiar o grande momento, para o saborear melhor. Apesar de viver numa casa onde não faltavam os livros, onde os clássicos e os menos clássicos foram sempre companhia, a Feira era anualmente o pretexto para ver o que se editara de novo, para comprar o que tinha ficado adiado da Feira do ano anterior, para se descobrir entre os "livros de ocasião" um título antigo que interessava.
Tenho saudades dessa sensação de ter de escolher os livros, atenta e criteriosamente. De ir para casa com um braçado de catálogos das editoras - recordo os Livros do Brasil, a Europa-América, a Ulysseia - que conservava ao lado da cama, que lia e relia até quase saber de cor (creio que ainda hoje sei de cor e por ordem os títulos de certas colecções). Munida de um lápis, ia fazendo as minhas escolhas e negociando com os meus pais (se tu vais comprar este, então eu compro o outro e podias comprar mais aquele, ainda... que achas?). Havia títulos que iam passando de ano para ano, porque algumas novidades editoriais pareciam mais atraentes, como os Nobeis, os Goncourts, e outros, revelando-se muitas vezes tremendas desilusões. Feita a escolha, retirado este da lista, voltado a incluir, retirado o outro, lá chegava a uma selecção final. Tratava-se então de contar o dinheiro amealhado para a ocasião. Dois ou três eram oferecidos pelo meu pai. O meu avô contribuia com mais um. A minha avó sugeria-me um adiantamento sobre uma pequena importância que normalmente premiava a minha passagem de ano, mas depois os resultados teriam de corresponder, porque o prémio já lá estava. Mais uns trocos que se iam poupando da semanada e lá ia eu, catálogos em punho, fazer as minhas compras.
A sensação era exaltante. Os livros tão cobiçados nas prateleiras, tão desejados e tão ansiosamente aguardados, iam passando para as minhas mãos, um a um. Foi assim que travei conhecimento, nos doces anos da infância com a Condessa de Ségur, com A Princesinha, O Pequeno Lorde, e toda a Colecção Azul, a Berthe Bernage, as Mulherzinhas e depois com o mundo que se abriu à minha frente deslumbrante, para nunca mais se fechar, com a Fiesta, do Hemingway, com O Nosso Agente em Havana, do Graham Green, com a Cidade das Flores (obrigada, Abelaira, por esse maravilhoso romance!), com Erico Veríssimo (ah, o Olhai os Lírios do Campo...), com Jorge Amado, com Aldous Huxley, com Kafka, Brecht, José Gomes Ferreira, Pearl Buck, Stephen Zweig, António Nobre, Nabokov, Somerset Maugham, Harold Pinter, Pirandelo, Osborn, Paternak, Gide... e tantos, tantos.
Hoje a Feira do Livro estende-se a todos os pontos de venda. Preços de "feira", descontos especiais, promoções, dia disto, dia daquilo, e tudo para justificar a redução dos preços, para fazer concorrência à Feira do Parque Eduardo VII. É normal: estamos num país com uma população escassa, envelhecida e com pouquíssimos hábitos de leitura. Portanto há que aproveitar as oportunidades que meia dúzia de vezes por ano se abrem ao livreiro.
Mas ir à feira já não é a festa que era. E tenho saudades da festa.
5 comentários:
Excelente post! Também tenho muitas saudades da Feira do Livro. Também ainda a vivi de outro modo, a fazer contas para comprar os livros de que precisava para a Faculdade, por exemplo. Bons tempos... :) Os seus, aposto que ainda foram melhores, talvez mais genuínos no prazer dos livros, sem dúvida.
Bom, adorei as ilustrações!
É imperdível a imagem do Edgar Allan Poe (o que eu gosto dos livros dele!) com o Corvo empoleirado na cabeça! Directo à minha vista e ao meu coração, M.!!
Obrigada.
Eu cá sou do tempo Parque Eduardo VII. Adoro o programa, embora ache que os preços não compensam, de maneira nenhuma. Lembro-me da ida à Feira com o meu pai, que me incentivava a comprar, comprar, comprar. Política da casa - para livros, há sempre uns trocos. Tento transmiti-la aos meus flhos.
Bjs
Pois é...
E não é só isso, pois não?
Óptimas encadernações, belas capas, impressões sem mácula....a fotografia do autor com a sua melhor roupinha...
E depois...o que resta?
Às vezes, nada...
"do que eu tenho saudades é da Feira do Livro na Avenida da Liberdade"
Também eu, queridíssima "m" ...
Gostei de (te) ler.
b*
isabel
ana paula, é dos nosso estimados amigos Red Nose...
beijinho
ouriço, fazes muito bem, os livros nunca são demais... se se lerem, claro!
anonyma, mas outras vezes tanto!!!
isabel, estamos a ficar saudosistas. Tenho de acabar com estes posts.
obrigada. beijinho
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