Havia o Conservatório, mesmo em frente da minha casa, havia as velhas instalações onde todos os dias explodiam para a rua os jornais – de manhã o Século, à tarde o Diário de Lisboa, a República, a Capital – havia o Hospital de São Luís dos Franceses, o elevador da Glória, S. Pedro de Alcântara, o Príncipe Real. Ao lado da minha casa vivia o António Ferro e a Fernanda de Castro. Das janelas que davam para as minhas, o Bernardo Marques desenhava as varinas e os gatos do nosso bairro e a Ofélia Marques iria lançar-se um dia ao encontro da morte.
Tenho saudades desse Bairro Alto. E tenho saudades de ouvir o meu avô contar as histórias de um Bairro Alto muito mais antigo, que ele próprio recordava com saudade. Porque o meu avô era do Bairro Alto, tal como a minha avó e o meu pai. Com nome em tabuleta de estabelecimento reputado, para que não restassem dúvidas. Marcenaria 1º de Dezembro. Que eu já só conheci na saudade do meu avô.
O meu avô era, portanto, um lisboeta, um alfacinha, nado e criado no Bairro Alto, bairrista e cheio de pergaminhos. Figura à António Silva, gestos à António Silva, humor à António Silva, o meu avô passara as noites da sua juventude a divertir-se nos teatros, na ópera e na revista, e a saciar o seu jovem apetite no Tavares e no Marrare. Uma vez por outra, aos domingos, a família saía de Lisboa, para fazer piqueniques e burricadas no Campo Pequeno. Nos meses de Verão retiravam-se para Queluz, para trocarem os ares pesados da cidade pelos ares livres de poluição da província.
Tenho saudades de ouvir o meu avô contar como era essa Lisboa de carruagens, tipóias, cavalos, camarotes no teatro, noites na ópera, cocheiros, trintanários e lavadeiras que iam buscar a trouxa para lavar a roupa no rio, em Caneças. Tenho saudades da sua saudade dos tempos de jovem artista, aluno de Belas Artes, livre, desocupado, amante da boémia, de Sevilha, de zarzuelas e das espanholas. Quando a vida ainda era fácil e amena. Saudades da forma como ele falava da minha avó, sua noiva menina de quinze anos - não havia rapariga mais bonita em Lisboa - paixão incondicional para sempre, até que a morte os separasse.
11 comentários:
Adorei o texto, embora já tivesse ouvido estas suas recordações.
...e a ilustração da Fábrica de Móveis é maravilhosa!!!
(Re)Bem-vinda
que texto tão terno! que imagens tão belas, E.
... conta mais...
beijos
B.
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apaguei o comentário pois estava em duplicado...
B.
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Bernardo Marques?
O casal Ferro?
Ui, que fascíno... Sou tontinha pelos anos 30 e 40!!!!
obrigada, s. bonita, a ilustração, é verdade.
depois eu conto mais, bandida. Ouvintes fiéis são um prazer.
pois é, ouriço, era gente muito engraçada. Conta a lenda que o António Quadros é que era muito mauzinho... atirava aos gatos com fisgas !
M.: Um regresso em grande! Peço desculpa por ter demorado a comentar mas fiz um intervalinho nos blogs. Adorei encontrar de novo aqui as suas memórias repletas de ternura e de encanto! Bem escrito, fotografias únicas e lembranças fascinantes!
Pelos seus olhos, reflectidos na sua escrita, posso saber como era então... e parece-me que eram bons tempos.
:) :)
A.P.
obrigada, ana paula. Bons tempos, sim, muito bons. Até pareço uma saudosista,que não sou. Mas tive uma infância tão, tão privilegiada que acho que merece ser recordada. No entanto esses mesmos tempos foram muito maus para muitas pessoas. Eu vivi numa redoma, mas nem todos tiveram essa sorte. De qualquer modo, não me queixo nada dos tempos de hoje. Também são muito bons.
Obrigada pela visita. Espero que continuem a encontrar aqui a sopinha reconfortante...
Tá lindo o blog! E muito mais dinâmico e recheado, do que antes. Está dando o maior caldo! :)
Adorei os textos de "tenho saudades". Adorei todos, mas o do telegrama é comvente. Abraços, já no Sul.
Não olhem agora, mas ela lá vai escrevendo... insistam... pode ser que assim consiga sair mais um livro!
obrigada! És lindo. Não mudes. Beijinhos, etc
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